segunda-feira, 28 de março de 2011

A inculturação da liturgia romana na história da Igreja

Pedro Boléo Tomé

1. A Antiguidade apostólica e o nascimento da liturgia romana

A liturgia cristã nasce e desenvolve-se em estreita ligação e dependência da tradição judaica. Não são abolidos os antigos ritos, ao menos em totalidade, mas outorga-se-lhes um novo significado. O próprio estilo e modo de rezar sofre uma forma de inculturação 1.

A liturgia cristã não nasce, portanto, como algo totalmente novo, mas, sob a orientação do Espírito Santo, desenvolve-se sobre matrizes preexistentes mediante um discernimento: de acolhimento de tudo aquilo que está em harmonia com a tradição apostólica e fiel à história da salvação; de exclusão (ou de purificação) de aquilo que é contrário ao Evangelho e à prática cristã; de reinterpretação, dando aos sinais, ritos e modelos, novos conteúdos e novos significados 2.

Pouco a pouco, fez-se sentir uma certa influência helênica. Com a paz de Constantino (édito de Milão, 313), dá-se um mais aberto contacto com a cultura helênica, atenua-se a oposição aos ritos pagãos e alguns elementos desta tradição são assumidos na liturgia.

Mas olhemos para Roma, pois o presente artigo pretende tratar da inculturação da liturgia romana. A Igreja localizada no território romano começa a ser Igreja Romana. Assumem-se na liturgia e, particularmente, no cerimonial pontifical certos elementos provenientes da corte imperial. A linguagem e os sinais são, no entanto, espiritualizados à luz da Sagrada Escritura e referidos ao mistério de Cristo 3.

Posteriormente, a sociedade sofrerá profundas transformações, no entanto estas insígnias e elementos permanecerão tal como foram assumidos. São institucionalizados e estilizados. Tornam-se, assim, sinais de uma cultura que já não é civil, profana, mas puramente simbólica, «sacra» 4.

Foi tradicional durante muito tempo considerar a existência de uma única liturgia para toda a Igreja, que depois viria a dar lugar às restantes tradições litúrgicas. Atualmente, alguns autores começam a pôr em dúvida essa uniformidade litúrgica dos primórdios da Igreja. No entanto, derivada de uma única liturgia ou não, com o tempo, nas sedes das grandes metrópoles antigas (Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Roma, Milão, Ravena, Aquileia, etc.) nascem tradições litúrgicas, ou também chamadas famílias litúrgicas. A estas sedes estava ligada a memória e a voz autorizada de santos bispos, e deve-se tanto à necessidade de uma adequação a diversas culturas, como à busca de diferentes formas e fórmulas que permitissem conservar inalterada, mais facilmente, a vitalidade da tradição litúrgica 5. Este fenômeno pode ser descrito como sendo simultaneamente de desenvolvimento, adaptação e inculturação.

Tanto a Oriente como no Ocidente, depois de um período de gestação caracterizado por uma incipiente criatividade de textos e da estruturação do tempo litúrgico, passa-se, na tentativa de se adaptar aos novos contextos culturais, a um período de verdadeira e própria criatividade litúrgica, tanto no que diz respeito aos textos, como às estruturas para os ciclos litúrgicos ou para a celebração dos sacramentos, de modo a alcançar a codificação ou cristalização dos tipos de famílias litúrgicas.

Encontramo-nos, portanto, hoje em dia numa situação diferente daquela da antiguidade apostólica. A inculturação que tratamos neste artigo, e que é impulsionada pela Igreja, a partir do Vaticano II, é a inculturação da liturgia romana, e é neste sentido que deve ser entendida. Não tem por objetivo a criação de novas famílias rituais. Por isso, para responder às necessidades de uma cultura determinada, o Concílio Vaticano II abre a possibilidade de adaptar o Rito romano 6, partindo das edições típicas estabelecidas 7. Nesta época inicial começa a desenvolver-se a liturgia romana ou o Rito romano. Foi opinião generalizada durante o século XX por parte dos estudiosos a existência de uma liturgia romana «pura», que teria existido entre os séculos V e VII. Alguns falam especificamente dessa liturgia «pura» e procuram analisá-la 8. Outros, ao tratar a história da liturgia parecem, de alguma forma, partir dessa pressuposição 9. Por fim, surgem ainda autores que preferem falar, mais do que de um momento estático e bem delimitado no qual se formou a «essência» do Rito romano, de um desenvolvimento orgânico de enriquecimento e crescimento progressivo. Neste sentido, a liturgia romana pura nunca teria existido e, se alguma vez existiu, nunca foi igual a si mesma. Isto é, preferem falar de uma liturgia romana em evolução, de uma liturgia que se encontra continua e simultaneamente desenvolvida e em fase de desenvolvimento 10.

Este rito, que talvez nunca tenha existido numa forma «pura», era a liturgia vigente na metrópole de Roma e nas dioceses sufragâneas. Havia substituído uma liturgia em língua grega e comum à cristandade dos primeiros dois ou três séculos. Os Papas Dâmaso (366-384), Inocêncio I (401-461), Gelásio I (492-496), Vigílio (537-555) e Gregório Magno (590-604), são os grandes responsáveis da sua implantação e formação. Com Gregório Magno promove-se a codificação da liturgia e alcança-se uma estrutura fixa em que a criatividade litúrgica é mínima.

2. Período franco-alemão: de Gregório Magno (590) a Gregório VII (1073)

Os livros da liturgia romana passam com relativa rapidez ao território franco-germano e aqui entram em contacto com a liturgia galicana (que existia e florescia já há vários séculos). Inicia-se assim uma múltipla e recíproca penetração.

Já com Pipino difunde-se o sacramentário gelasiano e verifica-se um início de reforma litúrgica. Posteriormente, no séc. IX, o imperador Carlos Magno, com a intenção de unificar o império, recorre à unidade da fé e da liturgia. Para tal, manda trazer os livros da liturgia romana e adapta-os à cultura galicana e, concretamente, à liturgia vigente nesse ambiente. Este período em questão constitui a época da liturgia romana sujeita ao influxo franco-germano. Confrontando tanto com os Ordines Romani originais como com o Pontifical Romano posterior, é fácil reconhecer o tipo de liturgia preferida por estes povos: desenvolvimento riquíssimo, material variado e abundante, estilo novo (mais longo, verboso, e dramático por vezes). O resultado é, portanto, uma combinação harmônica da herança romana antiga (caracterizada pelo equilíbrio, simplicidade, sobriedade, expressão estática) com o vigor dos novos povos (mais dinâmico, expansivo, vital, com tendência por vezes a uma espécie de anarquia) 11.

Por volta do século X sucede um processo similar com os imperadores da Germânia. Neste período Roma está em forte decadência litúrgica e a cúria está sem controlo. Os próprios imperadores, nas suas visitas a Roma, impõem o uso destes livros litúrgicos, outrora romanos, mas agora romano-germanos 12. O caráter simples, sóbrio e prático da liturgia romana cede lugar a uma nova cultura com outro tipo de mentalidade.

Vemos então como, sobre a base da liturgia romana, se adicionaram tradições tanto galicanas como germânicas que, posteriormente, foram introduzidas em Roma como próprias.

Parece conveniente salientar que, durante esta continua evolução, se realizaram inculturações erradas, que foram corrigidas ou eliminadas, em conjunto com as legítimas e verdadeiras, que perduraram 13.

Como a história demonstra, são casos pontuais de inculturações abusivas movidas por finalidades pastorais desviadas que a Igreja corrigiu e rejeitou.



3. De Gregório VII (1073) ao Concílio de Trento (1545)

No século X a vida litúrgica em Roma encontrava-se bastante degenerada e sofre uma influência muito positiva da obra litúrgica dos mosteiros franceses e germanos que, entretanto, tinham chegado a Roma graças aos imperadores. Efetivamente, Cluny, com a sua reforma, constituiu um fundamento seguro para a reforma da Igreja e da liturgia. A liturgia volta a florescer sob o influxo dos Papas da reforma: Gregório VII e Inocêncio III.

Gregório VII protesta contra a destruição da velha liturgia romana e procura restaurá-la. No entanto, ao não conhecer a real situação histórica, instaura e consolida a liturgia romano - franco - germana.

Os Papas ao retomarem o controlo da liturgia romana, põem fim às ingerências imperiais, e é imposto a todos os bispos da Igreja o uso dos livros litúrgicos de Roma. A partir de então, o nascente centralismo romano apenas permite a coexistência das liturgias de Milão e de Espanha. Para tal, a ordem mendicante de S. Francisco de Assis desempenhou um importante papel. Efetivamente, centrada, desde o segundo decênio do séc. XIII, num tipo de apostolado itinerante, constituiu-se em propagadora involuntária de uma forma muito concreta de liturgia romana: a liturgia da cúria romana. A razão é simples, tratava-se de uma liturgia adaptada às exigências dos capelães do Papa, que necessitavam de um ofício mais simples e prático 14, e que, portanto, possuía livros de transporte mais cômodo e de fácil manuseamento. Desta forma, por obra dos frades franciscanos, estas redações práticas e, especialmente, o «Missal» e o «Breviário da cúria romana», correram por todo o mundo, conseguiram uma boa aceitação e, evidentemente, foram copiadas. Assim, os discípulos de S. Francisco, facilitaram à liturgia ocidental uma standartização não só teórico - jurídica, mas sim efetiva.

Se este período se caracteriza pela adesão das dioceses ocidentais à liturgia romana e na progressiva unificação litúrgica, também se adverte que a atitude dos fiéis diante da liturgia se modifica profundamente. A liturgia, ação comum de sacerdotes e povo, parece reduzir-se agora a uma incumbência quase exclusivamente clerical. O povo assiste à missa, mas atento às suas devoções subjetivas, extra-litúrgicas. A assistência contenta-se com «ver», sem participar verdadeiramente, e produz-se uma distancia cada vez maior entre o celebrante e os fiéis 15.
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NOTAS
1. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 15-22.
2. Cf. Ibíd., p. 41; A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 85.
3. Cf. A. CHUPUNGCO, Liturgia e inculturazione, em A. CHUPUNGCO (ed.), Scienzia liturgica, II, Casale Monferrato 1998, pp. 363 ss.
4. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 50.
5. No entanto, através destas variadas manifestações continua, no seio dos povos que aderem ao cristianismo, sem variações através dos tempos e dos testemunhos humanos, a única e comum (católica) tradição litúrgica. Da unidade primordial (judaico-cristã) passa-se à pluralidade expressivo-litúrgica. Por outras palavras, a universalidade da tradição litúrgica encarna-se na lei do particularismo das diversas tradições litúrgicas. Cf. A. TRIACCA, Liturgia e tradizione, em A. BERNARDINO (ed.), Dizionario patristico e di antichità cristiane, II, Casale Monferrato 1983, pp. 1980 ss.
6. Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Instrução Varietates legitimae (25.I.94), 36: AAS 87 (1995) 302.
7. Cf. SC, 38-39. Deve-se respeitar “a unidade substancial do Rito romano” (SC, 38) e partir das edições típicas estabelecidas (SC, 39).
8. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 57-74. Este autor descreve desta forma os elementos formais característicos do génio da liturgia romana: “(...) notiamo subito la loro semplicità precisa, sobria, breve, non verbosa, poco sentimentale; la loro disposizione chiara e lucida; la loro grandeza sacra e umana insieme, spirituale e di gran valore letterario” (Ibíd., p. 67).
9. Cf. E. CATTANEO, Il culto cristiano in occidente, Roma 1984, pp. 97-123; M. RIGHETTI, Manuale di storia liturgica, I, Milano 1964, pp. 187-696; T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 28 ss.
10. Cf. A. TRIACCA, Sviluppo - Evoluzione - Adattamento - Inculturazione?, em I. SCICOLONE (ed.), L’adattamento culturale della liturgia, Roma 1993, p. 73-75.
11. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, pp. 80 e 84.
12. Cf. T. KLAUSER, Breve historia de la liturgia occidental, Barcelona 1968, pp. 60 s
13. Citamos por exemplo, os casos enunciados por Vogel, como é o caso das missas secas (sem ofertório, nem comunhão, nem cânon), as missas bi-, tri-, quadrifacciatas (vários formulários de missa com apenas um cânon e uma só comunhão), etc. (cfr. C. VOGEL, Introduction aux sources de l’histoire du culte chrétien au moyen âge, Spoleto 1966, p. 136). Neunheuser explica estes abusos como consequência de uma evolução na espiritualidade e na prática pastoral. Começam a celebrar-se muitas missas nas Igrejas, capelas e santuários que se vão construindo. Esta multiplicação parece dever-se a facilitar uma maior participação dos fiéis, no entanto, posteriormente, esta diversificação verifica-se por razões puramente devocionais, privadas, especialmente pelo sufrágio dos defuntos. São necessárias, assim, uma maior quantidade de missas e começa-se a celebrar mais de uma vez por dia. As autoridades eclesiásticas reagem proibindo a binação que, nos séculos X-XI, desaparece. Então, para satisfazer a piedade de muitos que requerem missas por intenções pessoais surgem os abusos antes referidos.
14. Cf. B. NEUNHEUSER, Storia della liturgia attraverso le epoche culturali, Tivoli 1988, p. 104.
15. Ibidem, p. 107.

domingo, 27 de março de 2011

Ministérios a serviço do povo

Márcio Antônio de Almeida

Quem já não se flagrou fazendo constatações apressadas sobre o povo que participa das celebrações nas comunidades? Selecionamos alguns exemplos de frases que se ouvem em reuniões de equipes de liturgia ou mesmo em encontros formação: “o povo não vai entender”; “o povo não vai participar”; “o povo não canta”; “o povo chega em cima da hora”; “o povo não está nem aí”. Estas afirmações podem revelar uma “terceirização” de responsabilidades pastorais, uma carência formativa dos agentes e um desconhecimento da própria definição de Igreja, povo de Deus, e da natureza da liturgia trazida pelo Concílio do Vaticano II.

A liturgia é fonte e cume da ação da Igreja (cf. SC n. 10). Por meio dela, o povo convocado se reúne em assembleia e animado pelos ministérios litúrgicos, escuta a Palavra e partilha do mesmo pão, do mesmo cálice. Ao fazer memorial da Páscoa de Cristo, renova-se a Aliança de amor com o Deus da vida. É páscoa de Cristo na páscoa do povo e páscoa do povo na páscoa de Cristo (cf. CNBB, Doc. 43, n. 300). Esse povo que celebra, mesmo sem um conhecimento litúrgico mais elaborado, expressa a fé no Deus da vida por meio de gestos e ações simbólicas, rituais.

O que fazer?

Antes de afirmar que o povo não vai entender, cabe às equipes estarem convencidas sobre o sentido da ação simbólica a ser realizada. Vale lembrar que a participação consciente, ativa e plena do povo (cf. SC 14) está relacionada ao nível de iniciação litúrgica das equipes de celebração e à qualidade do exercício ministerial. Os ministérios, à imagem do Cristo servidor, cumprem sua função e a comunidade dos fiéis, o povo, expressa sua adesão ao mistério celebrado e seu compromisso com a Boa Nova do Reino.

Neste sentido, há alguns pequenos detalhes a serem observados pela equipe que prepara as celebrações. Por exemplo, equipes “ruidosas” no celebrar tendem a perturbar a participação do povo, pois a movimentação de pessoas, gestos, sinais ou qualquer imprevisto, podem desviar a atenção da assembleia. Por isso, a consciência dessa limitação, por parte da equipe, é urgente e necessária para um serviço qualificado ao povo de Deus. Lembremo-nos que os ministérios brotam do meio do povo e se espera, no mínimo, que a dignidade do serviço prestado corresponda às expectativas desse povo.

Como fazer?

Queremos silêncio? Silenciemos. Na medida certa e no momento devido, o silêncio é capaz de preencher-nos do sentido do mistério.

Queremos respostas claras do povo? Sejamos claros naquilo que oramos, cantamos, proclamamos etc. A liturgia é um fazer objetivo que atinge em profundidade os sujeitos celebrantes. Por isso, durante as motivações, evitem-se comentários e explicações sobre o óbvio. É necessário “limpar” o supérfluo para que o rito possa se expressar com clareza e simplicidade por meio de seus sinais sensíveis.

Queremos a voz e a vez do povo? Que tal nos empenhar na preparação das celebrações da comunidade levando em conta o mistério celebrado no tempo litúrgico, na vida da comunidade, as pessoas concretas e os ministérios litúrgicos?

Aos poucos se descobre o valor das equipes de acolhida. Convém, no conjunto das pastorais, buscar um modo mais integrado de colocar em ação este serviço ao povo. Há casos de equipes que se desdobram na acolhida, mas o animador, ou mesmo quem preside, não tem a sensibilidade devida para conduzir o processo de acolher. Toda a comunidade se acolhe mutuamente, transparecendo a alegria do Ressuscitado. Nas celebrações da comunidade, acolher é servir, é deixar à vontade, trazer para perto, conduzir, direcionar, amar…

A equipe de celebração e os ministros do povo de Deus devem estar convencidos de suas atribuições (cf. SC 28-28). O povo vai celebrar convicto, “antenado” e comprometido se perceber que nossas ações se revestem de sentido teológico-espiritual, que se alcança por meio de um processo equilibrado de formação litúrgica aliado à experiência celebrativa. Assim sendo, o processo de seduzir o povo, de estimulá-lo à participação, de encantá-lo ao redor do Mistério Pascal é um desafio significativo para que a liturgia seja, de fato, o hoje da salvação.

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Márcio Antônio de Almeida é Liturgista e Musicólogo. Agente de Pastoral da Arquidiocese de São Paulo. Membro da Rede Celebra e da Equipe de Reflexão de Música Litúrgica da CNBB.

Fonte:
http://revistaparoquias.com.br/index.php/2010/09/ministerios-a-servico-do-povo/

O cuidado com a celebração

Pe. Carlos Gustavo Haas

Falar de criatividade é uma tarefa complexa e difícil. Afinal, até o Vaticano II, a liturgia viveu uma fase de 400 anos de “imobilismo”, onde nada podia mudar. E mudar, também não é fácil.

Apresento aqui alguns pontos que poderão ser aprofundados numa reflexão individual ou nas equipes de liturgia.

1. “Ser criativos” em uma celebração

Quando queremos “ser criativos” em uma celebração, nossa primeira preocupação deve ser a participação mais plena, ativa e frutuosa da assembleia. O grande motivo para “mudar” palavras, gestos, sinais e ritos não é o gosto da equipe de liturgia ou o que vimos em um show ou mesmo em uma missa transmitida pela TV, mas sim, a maior participação no culto a Deus, integrado em nossa vida atual.

Cito as palavras de Bento XVI na Exortação “Sacramentum Caritatis”, n. 38: “O primeiro modo de favorecer a participação do povo de Deus no rito sagrado é a condigna celebração do mesmo; a arte da celebração é a melhor condição para a participação ativa. A arte da celebração resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente esse modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, ‘sacerdócio real , nação santa’” (cf. 1Pd 2,4-5.9).

2. Ser “criativo” é ser fiel

Temos então um segundo elemento: ser “criativo” é ser fiel. Ser criativo não significa “inventar”. Não podemos confundir “criatividade” com “criativismo” – fazer algo diferente apenas por fazer diferente. Gosto do que escreveu Bento XVI: “A liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas” (Sacramentum Caritatis, 40).

O povo logo percebe quando propomos algo que vem apenas de um gosto ou ideia pessoal, ou quando somos criativos a partir do rito, do momento celebrativo, do mistério que estamos vivenciando.

No Documento 43 da CNBB, Animação da Vida Litúrgica no Brasil, n. 170, lemos: “Por criatividade não se deve entender tirar como que do nada, expressões litúrgicas inéditas. Pelo contrário, a verdadeira criatividade é orgânica: está ligada aos ritos precedentes como o celebrante de hoje aos do passado”.

4 cuidados que devemos ter

1. O “ativismo”: fazer na celebração um “desfile” de vários elementos, símbolos, gestos, ritos, sem silêncio, com movimentos em excesso. É a tentação de querer fazer tudo em uma única celebração.

2. O “intelectualismo”: é quando queremos explicar tudo que acontece em uma celebração. A celebração torna-se “cerebração”, poluída com comentários e mais comentários.

3 .O “espontaneismo”: deixar tudo para última hora, improvisar os ritos e gestos, deixando que aconteça apenas com a boa-vontade dos participantes. A verdadeira espontaneidade não é inventar um gesto. Os gestos mais expressivos da nossa existência são aqueles que, desde a nossa infância, nós enchemos de experiência humana, como abraçar a mãe, juntar as mãos, todos os gestos da oração que, para nós foram o meio próprio de nos encontrarmos com Deus; é aí que nós somos mais espontâneos. A verdadeira espontaneidade consiste em encher de novidade um gesto de sempre, pois os gestos e as palavras das pessoas não podem ser inventados até ao infinito.

4. O “fixismo”: repetir sempre a mesma coisa, caindo no formalismo e na rotina. Acaba cansando a assembleia, pois se torna algo sem o espírito próprio para o qual foi criado.

Enfim, para sermos criativos na liturgia, precisamos levar a sério tudo o que fazemos. A simples modificação de um gesto, sinal, atitude, acarreta uma profunda alteração do significado de muitas ações litúrgicas.

Zelar pela liturgia não significa “engessá-la”. “Liturgia é uma ação ritual, cuja característica é a repetição e a fidelidade à Tradição: “Façam isto (e não outra coisa!) para celebrar a minha memória (…)”. Liturgia não se inventa, se vive. O jogador de futebol não muda as regras do jogo; a cantora não inventa uma nova música, ignorando ou modificando a partitura. Ambos exercem sua criatividade ao entrar de corpo e alma no jogo de futebol ou na música; e dessa entrega nasce uma interpretação sempre nova, atual, surpreendente, tocante. É desse tipo de zelo que a liturgia precisa: unindo conhecimento e respeito pelas regras com entrega total ao ‘jogo’, levando a uma vivência profunda” (Ione Buyst, Liturgia em Mutirão, Edições CNBB, pág. 222).

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Pe. Carlos Gustavo Haas é Presbítero da Arquidiocese de Porto Alegre/RS, Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB, Mestre em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo, Roma.

Fonte:
http://revistaparoquias.com.br/index.php/2010/02/o-cuidado-com-a-celebracao/

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

QUATRO ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DE UM ESPAÇO LITÚRGICO

Frei José Ariovaldo da Silva, ofm

Deus se comunica com a gente através de sinais sensíveis. Ora, é na celebração da divina Liturgia que temos um dos lugares mais excelentes em que Deus, no Cristo e pelo Espírito Santo, comunica ao seu povo o dom de sua presença salvadora. Por isso, a Liturgia é feita de sinais sensíveis. Toda ela, em todos os seus detalhes, tem (e deve ter!) sua indispensável dimensão simbólico-sacramental. A começar pelo lugar físico em que acontece a celebração litúrgica.
Quatro, são os elementos fundamentais que não devem faltar na organização do espaço litúrgico, pelos quais nos é dado perceber a presença amorosa de Deus na celebração da divina Liturgia.

O altar
O centro de nossa fé cristã é o sacrifício de Cristo, sua total entrega por nós confirmada pela Ressurreição e o dom do Espírito. Ora, esta entrega se faz hoje presente precisamente sobre o altar de nossas igrejas, toda vez que celebramos o memorial da Páscoa, na santa Missa! E mais, como explicita a Instrução Geral do Missal Romano (IGMR): Ele “é também a mesa do Senhor na qual o povo de Deus é convidado a participar por meio da Missa; é ainda o centro da ação de graças que se realiza pela Eucaristia” (n. 296).
Assim sendo, o ponto de convergência e atenção, dentro do espaço celebrativo, tem que ser necessariamente o altar. E nada tem o direito de “roubar-lhe a cena”. Pois ele re-presenta (traz-nos presente à memória) o que é mais sagrado para nós: Cristo em sua entrega total por nós, ontem, hoje e sempre.

A mesa da Palavra
Antes de celebrarmos o memorial do Sacrifício redentor de Cristo, Deus nos fala e nos comunica o seu amor quando são feitas as leituras, inclusive quando se canta o Salmo responsorial. Como explicitamente diz a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano II: Cristo está presente “pela sua palavra, pois é Ele mesmo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na igreja” (SC 7).
Assim sendo, “a dignidade da palavra de Deus requer na igreja um lugar condigno de onde possa ser anunciada e para onde se volte espontaneamente a atenção dos fiéis no momento da liturgia da Palavra” (IGMR, n. 309). Trata-se da mesa da Palavra, ou ambão. Espaço litúrgico de fundamental importância simbólico-sacramental, pois evoca a presença viva do Senhor falando para o seu povo.

O espaço da assembléia
Outro elemento fundamental de um espaço litúrgico: O lugar da assembléia. Por que? É que a assembléia litúrgica não é uma simples congregação de pessoas, como qualquer outra. Uma vez constituída, mais que um mero ajuntamento de pessoas, ela é uma comunhão de cristãos e cristãs, dispostos a ouvir atentamente a palavra de Deus e celebrar dignamente a Eucaristia. É o próprio corpo de Cristo, cujos membros somos cada um de nós. E isto significa que, como tal, deve tratar-se de uma assembléia altamente participativa (cf. SC 14).
Assim sendo, também o espaço da assembléia deve aparecer como um espaço do Cristo enquanto corpo feito de muitos membros. E que todos os fiéis reunidos possam senti-lo como tal, tanto pela disposição arquitetônica geral do espaço, como pela disposição dos bancos ou cadeiras, em que todos os membros da assembléia possam sentir-se realmente como corpo bem unido, na escuta atenta da Palavra e na participação digna da Liturgia eucarística.

A cadeira da presidência
Na verdade, quem preside a Liturgia é o Cristo, na pessoa do presidente da assembléia litúrgica. O sacerdote que preside a Eucaristia é o sinal sacramental da presença invisível deste Cristo. Ao presidir a celebração, ao elevar a oração a Deus em nome de todos, ao explicar a palavra de Deus à comunidade, o sacerdote atua em nome deste Cristo. Por isso ele preside, ou seja, ele se senta diante de toda a assembléia, como representante do verdadeiro Presidente e Mestre, que é o Senhor Jesus.
Assim sendo, para visualizar o mistério da presidência de Cristo na pessoa do ministro (cf. SC 14), a Igreja recomenda que se coloque em destaque a cadeira de quem preside. Como vemos na IGMR: “A cadeira do sacerdote celebrante deve manifestar a sua função de presidir a assembléia e dirigir a oração” (n. 310). Em outras palavras, como já dissemos, a cadeira presidencial em destaque evoca a presença invisível do Cristo que preside a Liturgia na pessoa do ministro.

Perguntas pare reflexão pessoal e em grupos:

1) Quais são os elementos fundamentais de um espaço litúrgico? Na igreja de sua comunidade, estão todos eles presentes? E como estão dispostos?
2) Por que eles são fundamentais na celebração litúrgica?
3) Dá para sentir neles e por eles a presença atuante do Cristo na celebração?
4) Algum destes elementos precisa ser melhor trabalhado? Por que?

retirado de http://www.maedaigreja.org.br/index.php?system=news&news_id=788&action=read

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

GRAUS DAS CELEBRAÇÕES E PRECEDÊNCIA DOS DIAS LITÚRGICOS

Um dado importante vamos ver agora: é que o aspecto hierárquico da Igreja estende-se também à liturgia. Assim, entende-se que, na liturgia, não só os ritos têm grau de importância diferente, como também as próprias celebrações divergem quanto à sua importância litúrgica.
Podemos afirmar então que existem graus e precedência nas celebrações, e se dizemos genericamente "festas", três na verdade são os graus da celebração: "solenidade", "festa" e "memória", podendo esta última ser ainda obrigatória ou facultativa. Neste subsídio, a palavra "festa" sempre é usada no conceito aqui ora exposto, a fim de evitar mal-entendidos. Vejamos então:
• Solenidade
É o grau máximo da celebração litúrgica, isto é, aquele que admite, como o próprio nome sugere, todos os aspectos solenes e próprios da liturgia. Na "solenidade", então, três são as leituras bíblicas, canta-se o "Glória" e faz-se a profissão de fé. Para a maioria das solenidades existe também prefácio próprio.

Embora no mesmo grau, as "solenidades" distinguem-se ainda, entre si, quanto à precedência. Somente o Tríduo Pascal da Paixão, Morte e ressurreição do Senhor está na liturgia em posição única. As demais solenidades portanto se acham na tabela oficial distinguindo-se apenas quanto ao lugar que ocupam no mesmo nível. Assim, depois do Tríduo Pascal, temos: Natal, Epifania, Ascensão e Pentecostes, o que equivale a dizer que estas quatro solenidades são as mais importantes depois do Tríduo Pascal, mas Natal vem em primeiro lugar, na ordem descrita.
• Festa
"Festa" é a celebração um pouco inferior à "solenidade". Identifica-se, inicialmente, com as do dia comum, mas nela canta-se o "Glória" e pode ter prefácio próprio, dependendo de sua importância. Com referência a "festa" e "solenidade", na Liturgia das Horas (Ofício das Leituras), canta-se ainda o "Te Deum", fora, porém, da Quaresma. Como já se falou , as "festas" do Santoral são omitidas quando caem em domingo.
• Memória
"Memória" é, sempre, celebração de santos, um pouco ainda inferior ao grau de "festa". Na celebração da "memória", não se canta o "Glória". A "memória" é obrigatória quando o santo goza de veneração universal. Isto quer dizer que em toda a Igreja se celebra a sua memória. É, porém, facultativa quando se dá o contrário, ou seja, quando somente em alguns países ou regiões ele é cultuado.
As "memórias" não são celebradas nos chamados tempos privilegiados, a não ser como facultativas, e dentro das normas litúrgicas para a missa e Liturgia das Horas, conforme já se falou neste trabalho. Quando caem em domingo, são também omitidas, repetindo-se aqui o que já foi explanado.
A "memória" pode tornar-se "festa", ou mesmo "solenidade", quando celebração própria, ou seja, quando o santo festejado for padroeiro principal de um lugar ou cidade, titular de uma catedral, como também quando for titular, fundador ou padroeiro principal de uma Ordem ou Congregação. Também a "festa" pode tornar-se "solenidade" nas circunstâncias litúrgicas aqui descritas, estendendo-se esse entendimento às celebrações de aniversário de dedicação ou consagração de igrejas.